
Na vida cristã, o escrúpulo é aquele excesso de zelo que, em vez de ajudar, sufoca. É o medo constante de errar, mesmo quando se está fazendo o bem. Na adoção, isso aparece de forma muito sutil — mas brutal.
O casal quer adotar. Mas aí vem o pensamento:
– “E se eu estiver escolhendo errado?”
– “Será que estou rejeitando uma criança porque sou egoísta?”
– “Será que escolher um bebê e não uma criança mais velha é pecado?”
– “E se eu não for santo o suficiente para cuidar de um filho com deficiência?”
Esse tipo de escrúpulo trava o discernimento. Paralisa. O casal não avança, ou entra na adoção por culpa, tentando ser mártir, e não por vocação. Resultado? Sofrimento para todos — especialmente para a criança, que não precisa de heróis, mas de gente disposta a amar de verdade, com limites claros e coragem concreta.
O escrúpulo destrói a liberdade e confunde a consciência.
Ele transforma uma escolha de amor num campo minado moral. E pior: mascara a responsabilidade real com dilemas que soam espirituais, mas são puramente emocionais.
Sim, é preciso reflexão. Sim, há dilemas reais. Mas a consciência reta não é aquela que se atormenta — é a que age com verdade, humildade e responsabilidade. Na adoção, isso significa reconhecer até onde você pode ir, o que consegue sustentar emocionalmente, e onde você precisa de ajuda — sem culpas santificadas nem heroísmos inúteis.
1. A incoerência silenciosa
Na pastoral familiar, quando um casal fértil diz que quer ter só um filho, todo mundo franze a testa. A resposta é quase automática: “Mas por quê? Só um? E o irmão? E a generosidade?”. Há uma crítica moral aí, e até justa, sobre o fechamento à vida. Mas se esse mesmo raciocínio é aplicado à adoção, vira tabu. Ninguém quer dizer que quem adotou um está “fechado à vida”. Mas… e se estiver? Será que também não cabe discernimento aí?
2. Adotar um é bom. Mas é tudo?
Ninguém está dizendo que quem adota um filho está fazendo pouco. Pelo contrário. Está fazendo algo gigantesco. Mas não podemos romantizar a ponto de impedir a pergunta: por que parou ali? Foi falta de estrutura? Trauma? Medo? Cansaço? Ou foi só uma ideia de “cumprimos nossa missão”?
Se fosse um filho biológico, parar ali não seria visto com a mesma tranquilidade. Então o ponto é: por que tratamos a adoção como exceção moral, e não como abertura contínua à vida?
3. Diferença legítima, mas não definitiva
É óbvio que adoção é diferente de gerar biologicamente. Não dá pra fingir que é igual. A criança adotada traz uma bagagem, feridas, histórico, identidade. O cansaço emocional é outro. Mas a diferença não anula a pergunta. Pelo contrário: exige que ela seja feita com mais cuidado, mais maturidade e mais apoio da comunidade.
4. A maturidade na vocação adotiva
Talvez nossa dificuldade em pensar o “segundo filho adotado” revele que ainda tratamos a adoção como um plano de emergência, e não como vocação. O casal fértil, quando assume sua missão de gerar filhos, não coloca um limite moral tão fixo no número. Vai discernindo, confiando na graça, ajustando conforme as forças. Por que não fazemos isso na adoção? Por que não ensinamos isso nas pastorais, nos cursos de noivos, nas homilias?
5. O irmão é um presente – também na adoção
Criança adotada também merece irmão. Também precisa de convivência fraterna, de partilha, de limites que só a vida com outro traz. A adoção não pode privar uma criança da experiência da irmandade apenas porque “já foi um grande ato de amor adotar uma”. A generosidade na abertura à vida passa também pela coragem de dizer: se Deus chamar de novo, a gente vai abrir a porta de novo.
A abertura à vida na adoção é um dos temas mais negligenciados – e ao mesmo tempo mais desafiadores – dentro da experiência cristã da paternidade. Ao contrário do que muitos pensam, esse debate não se resume à pergunta “quantos filhos adotar?”, nem se encerra com a adoção de uma única criança. O ponto central aqui é mais profundo: o que significa, de fato, estar aberto à vida quando a vida não é gerada, mas acolhida?
A verdade é que não existe uma resposta única, fixa ou matemática. A Igreja fala com sabedoria sobre paternidade responsável, e isso vale tanto para os que geram quanto para os que adotam. No entanto, há armadilhas perigosas escondidas dos dois lados do caminho: de um lado, o escrúpulo, e do outro, a falta de discernimento.
O risco do escrúpulo
Há casais que iniciam o processo de adoção com generosidade, fé e boa intenção. Escolhem, por exemplo, uma criança pequena, com um perfil que sabem que poderão acolher com maturidade. Mas, ao pensar em um segundo filho, sentem-se moralmente pressionados a “abrir mais o perfil”. Afinal, “já que estou adotando, tenho que ser mais generoso”. Esse pensamento pode parecer virtuoso, mas nem sempre nasce do discernimento. Muitas vezes, nasce do escrúpulo: aquele excesso de consciência que paralisa ou distorce o juízo. E o resultado? Casais emocionalmente exaustos, famílias desestruturadas e, pior, crianças que voltam a sofrer rejeição dentro do próprio lar.
A falta de discernimento
Por outro lado, há casais que poderiam se abrir à vida de forma mais ampla – não só no número de filhos, mas na profundidade do acolhimento – mas não o fazem por medo, comodismo ou apego ao conforto. Vivem dentro de uma liberdade que, embora legítima, pode se tornar uma falsa zona de segurança. E aí nasce outra pergunta incômoda: será que essa liberdade está verdadeiramente orientada para o amor e para o dom de si?
A pergunta que não quer calar
Qual é a quantidade de filhos que um casal deve ter?
Essa pergunta não tem resposta numérica. Porque não se trata de quantidade, mas de postura interior. O casal aberto à vida, na adoção, não é aquele que adota cinco, seis ou sete crianças — mas aquele que vive em permanente escuta a Deus, atento aos sinais, disposto a responder quando for chamado, mas consciente também dos seus limites.
Uma questão negligenciada
O problema é que essa reflexão quase não existe no meio católico. A adoção ainda é tratada como exceção, como “plano B”, como missão pontual para casais inférteis. Pouco se fala sobre adoção como vocação permanente, como expressão plena da abertura à vida. E menos ainda se fala sobre o discernimento do segundo filho adotado. No entanto, é urgente levantar essa discussão. Porque a adoção não é apenas um ato isolado de caridade, mas uma missão contínua de amor, que se renova a cada criança acolhida.
Quando o coração se alarga
O mais bonito é ver como, em muitos casos, o coração do casal vai se alargando com o tempo. O testemunho de outro, a partilha de experiências, a graça de Deus que sopra onde quer… Tudo isso vai abrindo espaço para o novo. E aí, o que parecia impossível se torna caminho. Não por força humana, mas porque a graça sustenta quem se coloca a caminho com sinceridade.
Conclusão
A abertura à vida na adoção não pode ser medida apenas por números, nem por emoções passageiras. É uma realidade que exige liberdade interior, discernimento constante, apoio comunitário e, sobretudo, uma escuta profunda da vontade de Deus. E se a Igreja quer, de fato, ser profética na defesa da vida, precisa urgentemente colocar esse tema no centro das suas reflexões pastorais. Porque a criança que aguarda por um lar não pode ser tratada como exceção.